Viola na sacola
Escrito por Zé Alfredo Ciabotti-
Publicado em 22 Agosto 2017
Faltam menos de trinta minutos para as quatro horas da tarde, horário marcado para o clássico do Triângulo, entre Uberaba Sport e Uberlândia. A calçada em frente ao estádio Engenheiro João Guido, o Uberabão, está cheia de gente. Homens, mulheres e crianças, a maioria usando vermelho, formam diversas filas: para entrar no estádio, para comprar cerveja, refrigerante ou espetinho. “Vamos beber aqui porque lá dentro é mais caro”, avisa um ambulante com uma caixa de isopor apoiada no ombro.
Logo menos, as equipes de Uberaba e Uberlândia entrarão em campo pela nona rodada da Segunda Divisão (Módulo II) do Campeonato Mineiro de 2007. Na Segundona de Minas, sete equipes disputavam duas vagas para jogar na elite do futebol mineiro no próximo ano. Além dos dois, os times de Extrema, Formiga, Social, URT e Valeriodoce duelariam entre si pelas vagas. Até ali, o USC era líder do certame, com 18 pontos, dez a mais que o rival e adversário daquela tarde. “Na Segundona de Minas Gerais, os fracos não têm vez”, sentenciava o narrador pelo rádio.
PC seria o herói do clássico
Ex-jogador e agora gerente de futebol do Colorado, Paulo Luciano recepcionava os torcedores, ora ou outra abraçando alguém que ali entrava. “Hoje vai dar mais de cinco mil”, calculava, olhando para as arquibancadas. “Uma vitória hoje é importante, quem vence clássico dispara”, avaliava o cartola, no mesmo momento em que era saudado: “o maior meio campo da história do Uberaba”, gritava entusiasmado um torcedor. O alto-falante do estádio toca repetidamente o hino do Uberaba Sport Club, composto pelo barbeiro e poeta Lourival Balduíno do Carmo, o popular Barão – chamado assim por sempre se vestir de forma impecável – sobre a melodia da Marcha da Cidade, composição do maestro italiano Rigoleto de Martino, cliente na barbearia de Barão.
Fogos estouram no céu e uma fumaça vermelha toma conta da porta do vestiário, o locutor do estádio anuncia que o Uberaba está em campo. Sob aplausos e gritos de milhares, a equipe em vermelho e branco subia ao campo. Ao mesmo tempo, para evitar vaias, o time da cidade vizinha também adentrava o gramado. O último a subir e logo rodeado de repórteres era o experiente e folclórico atacante Viola, estrela do Verdão.
Aos 38 anos, o atacante campeão mundial com a Seleção em 94 e ídolo do Corinthians, atuava pelo seu décimo quarto time da carreira. “Sou como um artista. Dou show para multidões”, afirmava o irreverente jogador que, para defender as cores do Uberlândia, era bancado por uma faculdade da cidade. Pelo lado do Uberaba, a torcida se divide entre dois: o meio campo Barrinha, artilheiro do time na competição, e o atacante Valderi, aclamado pela torcida, que entoava o grito de “Iiii é Valderi! Iiii é Valderi!”
E foi a aclamada dupla que criou a jogada do primeiro gol do USC. Dezenove minutos e, após bola longa, cruzamento de Barrinha pela esquerda e desvio pro gol do baixinho Valderi, para explosão da torcida que, em uníssono, gritava o nome da cidade.
Valderi (d) abriu o placar; repare as arquibancadas lotadas
A partir daí, a partida é tudo aquilo que os torcedores modernos – amantes do futebol europeu – desprezam. Chutões, bolas longas, divididas. Com o fim do primeiro tempo, as filas voltam a se formar em volta das arquibancadas, dessa vez, além de aguardar para comprar um copo de cerveja, refrigerante ou água, formam-se filas na porta do único banheiro disposto no estádio. Ambulantes aproveitam que a atenção dos presentes não está mais no jogo e anunciam seus produtos. Alguns torcedores se mostram preocupados com o jogo, visto que o Uberlândia terminou melhor o primeiro tempo. “O Luiz Eduardo deveria mexer no time, pra dar uma ligada”, comenta um torcedor. “O Uberlândia vai vir com tudo”, completa.
O segundo tempo correu tenso. Foram sete cartões amarelos em menos de vinte e cinco minutos. Treinadores das duas equipes promovem mudanças, mas o jogo permanece truncado. E foi em uma dessas jogadas sem muita plástica que o USC aumentou. O lateral-direito Filhão chuta para dentro da área na esperança de qualquer coisa, a bola desvia na defesa e entra. Os torcedores do Uberlândia, confinados em um canto do estádio e protegidos por três policiais, sentam-se. Por outro lado, a torcida em vermelho faz a festa. Enquanto ainda comemorava, o UEC descontou. Gil aproveitou apagão da ainda extasiada equipe de Uberaba e marca. Dois gols em menos de dois minutos, um pra cada lado. “É coisa de clássico”, alguém avalia na arquibancada.
Grande parte da torcida uberabense já não tem a mesma força e assiste apreensiva ao jogo. Apesar das investidas uberlandenses, Viola pouco toca na bola. Parece cansado. O atacante, com passagens por grandes clubes do futebol brasileiro e pelo futebol europeu, parece não se entender com os companheiros de equipe e pouco toca na bola, finalizando apenas uma vez em quase 90 minutos de jogo. A partida caminhava para o fim. Estávamos no segundo minuto dos quatro de acréscimos. Alguns torcedores já caminhavam para a saída, a torcida organizada enrolava aos poucos o bandeirão.
O Uberlândia tentava uma possível última investida: bola nos pés do atacante Tico que, dentro da área, acaba derrubado pela defesa uberabense. O árbitro Hilton Seixas marca pênalti. A torcida uberlandense festeja. Viola pega a bola e coloca na marca da cal. Do outro lado, o goleiro Paulo César, popular PC, que nunca jogou na Europa ou em clube grande. Bola do atacante no canto esquerdo para bela defesa de PC, que agarra a bola. Fim de jogo, a torcida alvirrubra explode.
Viola dá autógrafo a torcedor do USC: "artista"
Não se trata apenas de uma vitória. Trata-se de um grande personagem do futebol brasileiro, trata-se da cidade vizinha e do time rival, trata-se de um pênalti perdido aos 49 do segundo tempo. Com as mãos na cintura, incrédulo, Viola ainda permaneceu olhando para o nada. Jogadores e comissão técnica abraçam um emocionado Paulo César. Alguns torcedores ovacionam o goleiro, outros hostilizam Viola, que agora caminha para o vestiário, visivelmente irritado. Para o USC, nada mais seria impossível nesse torneio.
Sem nenhum brilho, Viola acabaria dispensado pelo Uberlândia antes mesmo do fim do campeonato. Pouco mais de três meses depois, o Uberaba Sport subiria para a elite do futebol mineiro, dias após completar 90 anos.